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Como vem bem entendido e pacífico na doutrina administrativista, vem sabido que o regulamento constitui uma forma de agir da Administração Pública (AP) que não tão-só obrigará os seus destinatários como outrossim vinculará a futura actuação administrativa. Ora da amplitude do conceito tradicional assinalado ao regulamento, torna-se possível vir a defini-lo enquanto acto normativo, emanado por entidades administrativas, no exercício da função administrativa, com um valor infralegal, i.é., numa chamada “força regulamentar”. Tal característica do conceito tradicional, parece-me que vem a indicar o sentido dos regulamentos consubstanciarem normas jurídicas emanadas por órgãos de entidades administrativas. Dessa sorte, e o que se pretende comentar, é a querela da titularidade do poder regulamentar. É que, parece-me, em bom rigor, “que por entidades administrativas”, não será sensato tão-só espelhar-se o entendimento dos sujeitos dotados de personalidade jurídico-pública, i.é., pessoas colectivas públicas, porquanto parece “estar na berra” os sujeitos privados incumbidos do exercício da função administrativa. Hodiernamente, vem-se assistindo ao remate destas entidades num conceito amplo de AP em sentido “organizatório”, ficando equiparadas a pessoas colectivas públicas. Sob os primas doutrinários de Rui MANCHETE, Luís FÁBRICA e SALGADO DE MATOS, perfilhando a douta senda, parece que à noção de AP abarcará sensatamente os regulamentos emitidos por entidades privadas no exercício de poderes públicos. Porquanto, o próprio CPA não parece estar alheio a esta querela, pela sorte do âmbito de aplicação atingir a “conduta de quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, adoptada no exercício de poderes públicos ou regulada de modo específico por disposições de direito administrativo cfr. Art. 2º/1.
Arreigando-se a douta esteira de Rogério SOARES, a identificação dos respectivos titulares será querela fulcral no que tange à teoria do poder regulamentar, porquanto i) a complexidade polimorfa que está inerente à estrutura da AP, ii) a emergência de uma plêiade dos novos “entes” administrativos e iii) o movimento de atribuição de poderes de autoridade a entidades privadas com funções administrativas parece sobretudo implicar uma especial tomada de posição à querela. O primeiro titular do poder regulamentar será o Governo, enquanto órgão superior da AP, cometido, a este, o núcleo essencial da função administrativa Cfr. Ac. do TC nº17/97. Dessa sorte, nos termos da alínea c) do art. 199º da CRP, competirá ao Governo, no exercício de funções administrativas, fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis. Veritas, o Governo terá uma competência generalizada para a emissão de regulamentos externos, parecendo ser constitucionalmente admissíveis os regulamentos governamentais fundados directamente na CRP, in maxime, estando em causa regulamentos independentes, tomando-se arrepio directo no que vem plasmado na alínea g) do art. 199º da CRP. Outrossim, os órgãos estaduais hierarquicamente dependentes do Governo com poderes limitados a uma certa circunscrição administrativa poderão emitir regulamentos, pelo imperativo “desconcentrador” constante do nº 2 do art. 267º da CRP, porquanto leva aí implícito “descongestionamento” das competências administrativas, e nessa sorte, a distribuição do poder regulamentar entre os vários centros decisórios, não se circunscrevendo tal possibilidade da sua emissão ao Governo. Nesta sorte, os órgãos da Administração central periférica terão o poder regulamentar que lhes for atribuído por lei.
No que tange à Administração estadual indirecta, parece possível reportar-se precipuamente à possibilidade de emissão de regulamentos pelos órgãos de institutos públicos, enquanto entidades que desempenham tarefas estaduais sob a superintendência e a tutela do Governo, urgindo daqui chamar-se à colação a alínea h) do nº1 do art. 21º da LQIP, competindo ao conselho directivo do instituto aprovar os projectos dos regulamentos previstos nos estatutos e “os que sejam necessários ao desempenho das atribuições do instituto”, entendendo-se que constitui esta uma norma genérica habilitante para a emissão de regulamentos pelos órgãos dos institutos. Quanto às autoridades reguladoras, o exercício dos seus poderes regulatórios sectoriais parece postular, que disponham inter alia de poderes de regulamentação cfr. arts. 2º/2/e) e 40º/2 da Lei-quadro das entidades reguladoras (Lei nº67/2013, de 28 de Agosto). Tradicionalmente, como defendem FREITAS DO AMARAL e Pedro GONÇALVES, o argumento mobilizado para justificar a amplitude destes “poderes normativos” residirá na extrema tecnicidade subjacente aos regulamentos das entidades reguladoras que estão indubitavelmente em melhor condição e posição para os elaborar. Tal último entendimento não vem baralhar as legis artis, i.é. normas técnicas, com as normas jurídicas com linguagem técnica. A independência destes regulamentos resulta de a lei prévia tão-só determinar a competência objectiva e subjectiva para a sua emissão, sem efectuar uma referência quanto ao conteúdo ou sentido. Tomado o limite da impossibilidade de subversão do Estado de direito, arrepiado ao princípio da reserva de lei e de função legislativa, defende-se a emanação deste tipo de regulamentos fulcral ao funcionamento do Estado regulador, porquanto parece afigurar-se admitir que, v.g., a Entidade Regulador da Saúde emita regulamentos sobre definição de prioridades de doenças (filas de espera) porquanto se trate de matéria que não tem de ser objecto de lei, não se afigurando convenientemente que o fosse, porquanto não esteja in casu o exercício da função legislativa. Inverso raciocício se, v.g.g., para um regulamento da mesma entidade estivesse agora in casu o acesso a fichas clínicas levantando logo direitos fundamentais.
Num contexto de privatização da AP, vem-se massivamente a assistir à devolução do poder regulamentar a particulares. Será o que vem a suceder com as pessoas colectivas privadas criadas e formadas por entidades públicas, onde vêm a avultar as sociedades de participação pública, cuja conceptualização enquanto “entidades administrativas privadas” não parece obliterar a sua consideração como sujeitos privados, pese embora tão-só em sentido formal “organizatório,” perfilhando-se aqui inteiramente as doutas posições de VITAL MOREIRA e Paulo OTERO. No horizonte da devolução de tarefas públicas a privados, encontrar-se-ão os concessionários, as entidades privadas que exercem uma actividade de tradução do objecto no desempenho de uma uma função administrativa, as instituições particulares de solidariedade social e as pessoas colectivas de utilidade pública, defendendo-se que a admissibilidade do exercício do poder regulamentar parece encontrar espelho no corpo da alínea d) do nº1 do art. 4º do ETAF, i.é., sujeitos privados, v.g. concessionários, no exercício de poderes administrativos. Desta sorte, parece que a titularidade do poder regulamentar por entidades privadas possa resultar de uma atribuição legislativa ou de uma delegação administrativa.
Finalmente, de um palco, o exercício do poder regulamentar por uma entidade privada vem a resultar da lei, quando decorrida da lei, a atribuição do poder regulamentar não dispensa a observância pelo princípio da legalidade, exigindo-se, dessa sorte, a habilitação legal v.g. cfr. art. 10º/c), d) dos Estatutos da APL (- Administração do Porto de Lisboa, S. A.). Compreendendo-se a cumplicidade dos dois pressupostos, conclui-se francamente pela devolução de uma competência normativa pública a uma entidade privada tão-só se existir um acto de natureza pública (in casu, um acto legislativo) a determiná-la directa e iniludivelmente, conferindo-lhe o poder de emitir normas jurídico-públicas e não tão-só da proposta da sua emissão, em virtude do desempenho das funções administrativas que a entidade prosseguirá e pelas quais será responsável. Doutro palco, sobre o cenário de privatização da AP, assiste-se outrossim à delegação de poderes públicos do poder regulamentar a entidades privadas, operada por acto ou contrato administrativos, com fundamento legal, porquanto se prevê aqui que um acto ou contrato constituam os “antecedentes mais próximos” da emanação de regulamentos administrativos. Resultará quando o acto ou o contrato vem a destinar delegar a competência normativa no respectivo destinatário ou no cocontratante, assumindo-se como actos ou contratos de delegação do poder regulamentar, defendendo aqui Paulo OTERO que “estes” decretos regulamentares constituem “regulamentos de valor reforçado”. Em bom rigor, prefiro defender que às hipóteses em que existe um contrato ou um acto de delegação do poder regulamentar, este último surgirá como um dos elementos de uma fattispecie habilitante complexa, que inclui a disposição legal que permite a delegação do poder para a emissão do regulamento e a cláusula contratual que vingará delegar a competência normativa. Um bom exemplo, que me parece ter encontrado para vingar o que venho aqui último comentar, serão os regulamentos de tarifas emanados pelos concessionários do serviço público de movimentação de cargas em áreas portuárias, porquanto a emissão das suas normas fundam-se simultaneamente na Base IX das Bases da Concessão aprovadas pelo Decreto-Lei nº324/94 de 30 de Dezembro e na cláusula de contrato de concessão que, concretamente, delega o exercício do poder normativo numa determinada concessionária.
Raul CATULO MORAIS
Aluno com o número 24448
30 de Março de 2017
▪Jorge PEREIRA DA SILVA, «Âmbito de aplicação e Princípios Gerais no Projecto de Revisão do Código do Procedimento Administrativo», in: Rui MANCHETE, Luís FÁBRICA, A. SALGADO DE MATOS, Projecto de Revisão do Código do Procedimento Administrativo, Universidade Católica Editora de Lisboa, 2013, pp. 46 e ss..
▪Rogério SOARES, Direito Público e Sociedade Técnica, Coimbra, 1969, p.169
▪Acórdão do Tribunal Constitucional nº17/97
▪FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol II Almedina, Coimbra, 2016, pp. 140, 534 e 182.
▪VITAL MOREIRA, Administração Autónoma e Associações Públicas, Almedina, Coimbra, 1997, pp. 285 e ss., 280 e ss., 541 e ss..
▪Paulo OTERO, Legalidade e Administração Pública, Almedina, Coimbra, 2003 pp. 304 e ss..
O progresso tecnológico vertiginoso, que tem vindo a ocorrer essencialmente desde as últimas décadas do século XX, operou uma transformação radical das modernas sociedades, com a consequente emergência da designada Sociedade de Informação, caracterizada pela desmaterialização da informação, pela simplificação da linguagem escrita (se é que não podemos falar da sua substituição por imagens e símbolos universais de comunicação), pela criação das redes sociais, pela conexão à “internet” e pela democratização da utilização do computador pessoal. Assistindo-se a um progressivo domínio da vida social pelas conquistas da técnica, a modernização administrativa tornou-se inadiável, surgindo, por conseguinte, como inegável a necessidade de construção de uma relação entre a Administração Pública e a tecnologia.
A introdução da informática no âmbito da Administração Pública, alicerçada na incorporação das novas tecnologias na sua gestão e funcionamento, assim como no seu relacionamento com os cidadãos, resultou na criação de novos mecanismos e institutos jurídicos que, progressivamente, revelaram uma nova Administração: a Administração Pública eletrónica. Este processo, que ainda se encontra em pleno desenvolvimento e aprofundamento, como podemos concluir pelas novidades que vão sendo anunciadas pelo Governo, a última das quais reporta-se à consagração do endereço eletrónico como a única morada digital nas relações com as entidades públicas[1], provocou uma profunda descaracterização da Administração Pública tradicional. Tarefas mecânicas como o registo da entrada e da saída de requerimentos e de documentação, o arquivamento em papel dos processos físicos, a extração de cópias e fotocópias dos documentos instrutórios, o atendimento presencial aos utentes dos serviços públicos, a notificação presencial de atos interlocutórios e de decisões ou ainda o próprio transporte dos documentos entre os vários serviços públicos tornaram-se residuais e praticamente dispensáveis.
Todavia, a tecnologia não se limitou a substituir procedimentos humanos por comportamentos automatizados ou sequer a passar de um procedimento redigido, ao passar da caneta, por um procedimento digitalizado, ao som das teclas de um computador. Como afirma MIGUEL PRATA ROQUE, “…é demasiado redutor encarar-se a automatização eletrónica como “meio” auxiliar de atuação: de tratamento de dados; de registo de informações; ou de comunicação de decisões. Bem pelo contrário, essa automatização eletrónica implica uma profunda reestruturação administrativa – do ponto de vista, da própria morfologia das atuações administrativas (…), mas também uma adaptação dos procedimentos administrativos a essa nova realidade.”[2]. Esta realidade é igualmente enfatizada por PAULO OTERO, que refere que “Em termos evolutivos, a informatização administrativa passou de uma primeira fase, dita do “computador-arquivo”, para uma nova fase, batizada do “computador-funcionário”, permitindo hoje, em casos de predeterminação por via de programação de computador, a adoção de “atos administrativos informáticos”(…)”.[3].
Ainda no domínio da doutrina portuguesa, encontramos VASCO PEREIRA DA SILVA que afirma o seguinte: “…este fenómeno trouxe consigo um sem-número de transformações, nas quais “o Direito da Informática se cruza (…) com a Ciência da Administração” (BADURA), uma vez que vai implicar modificações da “atividade decisória da Administração, mas afeta também a organização administrativa e o procedimento decisório que envolve o cidadão” (SCHIMDT). Colocam-se, assim, problemas jurídicos novos, mas sobretudo fica em aberto um enorme desafio à capacidade dos juristas, que é o da “necessidade de compatibilizar as normas jurídicas com a linguagem informática, a fim de se poder proceder à sua execução com a ajuda do computador” (BADURA).”[4].
A necessidade de compatibilização de que nos fala este Autor desagua na premência da operação de enquadramento jurídico desta realidade quotidiana, que foi atendida em 2015 com a reforma da lei processual administrativa. Ainda que o uso generalizado dos meios eletrónicos pela Administração correspondesse a uma realidade anterior ao Novo Código do Procedimento Administrativo (NCPA), este veio, todavia, reconhecer pela primeira vez a extrema e crescente relevância da regulação dos comportamentos automatizados, consagrando uma novidade absoluta, com afloramentos ao longo do diploma legislativo: o princípio da administração eletrónica (artigo 14.º NCPA).
Como consequência, passou a estar acautelada a implementação do modelo de Administração eletrónica nos demais âmbitos setoriais, como a Administração tributária e fiscal (no contexto do processamento de contribuições, impostos, taxas e benefícios fiscais), a segurança social (no contexto da tramitação procedimental e pagamento de pensões, abonos, subsídio de desemprego, rendimento social de inserção), o sistema público de saúde (no que toca aos dados pessoais de saúde armazenados em sistemas de “chips”, digitalização do pedido, realização e conclusão de exames e meios complementares de diagnóstico, registo de consultas, tratamentos e internamentos hospitalares, receitas eletrónicas), o registo civil, criminal e predial, e a justiça (no que diz respeito ao funcionamento das secretarias dos tribunais, aos novos meios tecnológicos de investigação criminal e aos mecanismos de vigilância eletrónica, por via rádio frequência), sobretudo a partir de 2002, após a adesão de Portugal, enquanto membro da UE, ao Plano de Ação eEurope 2002, uma iniciativa que fazia parte da estratégia de Lisboa para transformar a UE numa economia mais dinâmica e competitiva. Foi, assim, que surgiu o Portal do Cidadão, o programa Simplex, o Serviço da Segurança Social Direta, o Cartão do Cidadão e o Passaporte Eletrónico, o portal de emprego e formação (NetEmprego), o conceito de assinatura eletrónica, bem como a possibilidade de entregar a declaração de IRS por meios eletrónicos.
Um dos setores onde mais se apostou na implantação da Administração Pública Eletrónica foi o do ensino, com destaque para o subsetor respeitante às universidades públicas. Foi com este pano de fundo que, na sequência de um Comunicado à Escola[5] proferido pelo Senhor Diretor, o Professor Doutor Pedro Romano Martinez, se procedeu no ano letivo corrente à implementação da plataforma eletrónica Fénix na nossa Faculdade, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Por ser uma iniciativa próxima de nós, enquanto estudantes desta entidade, será por via dela que me pronunciarei sobre algumas das alterações que este novo modelo de Administração incutiu ao agir administrativo, enunciando as suas vantagens, riscos e perigos.
Uma das alterações que teve lugar na sequência desta evolução foi a desmaterialização do procedimento administrativo, já que o acesso dos cidadãos à Administração é feito, cada vez mais, através de portais ou plataformas da Internet, onde se recolhe informação e formulários on-line, se envia informação e apresentam reivindicações, impugnações e esclarecimentos, registando-se que a resposta administrativa vem, crescentemente, por via eletrónica. Neste seguimento, assiste-se à criação de linhas pessoais de acesso à informação, envio e obtenção de certificados constantes de bases de dados administrativos, onde se armazena documentação reservada de natureza pessoal ou profissional, que impõem, com vista ao exercício de direitos ou o cumprimento de deveres, a indicação de uma palavra-chave de acesso (password).
Fazendo o paralelismo com a realidade académica, o funcionamento da plataforma eletrónica Fénix assenta na criação de uma conta de aluno, cujo acesso se faz mediante um nome de utilizador e uma palavra-chave criados pelo próprio, tendo em vista a segurança dos seus dados e informações. Estas são relativas a inscrições e matrículas, horários, calendários das provas de avaliação, pautas de classificação e certificados, permitindo-se uma constante troca de informações entre a Faculdade e respetivas divisões e o aluno. Assim, a título exemplificativo, o aluno procede à renovação da matrícula por via da plataforma, ao passo que a divisão académica disponibiliza na mesma as classificações obtidas por ele.
Como consequência, verificam-se grandes avanços na armazenagem, gestão e utilização da informação administrativa, com uma evidente redução do uso do papel pela desnecessidade de arquivamento em papel dos processos físicos, com um acesso mais rápido e imediato à informação, localizada e concentrada a uma simples tecla do computador, o que permite uma gestão e intercâmbio documental permanentes, consagradora da agilização dos procedimentos administrativos. Por exemplo, é graças à existência da plataforma eletrónica Fénix que o Professor Doutor Francisco Paes Marques tem a possibilidade de dispensar a entrega de ficha de aluno materializada, exigindo somente a apresentação de fotografia na conta do próprio.
Por sua vez, esta desmaterialização contribui para a plena efetivação do “princípio da continuidade dos serviços públicos”, permitindo à Administração Pública agir, seja num regime de continuidade de abertura ao público, seja fora do horário de expediente. Com efeito, o modelo de Administração eletrónica caracteriza-se por uma Administração que se encontra aberta vinte e quatro horas por dia, todos os dias do ano, sem feriados, férias ou horários de funcionamento, o que se deve à disponibilização de sítios institucionais e de meios de comunicação à distância, como correio eletrónico, linhas telefónicas de 24 horas ou telefax, assistindo-se, por conseguinte, à implosão do modelo paradigmático da “administração intermitente”.
Deste modo, o aluno passa a ter a possibilidade de dirigir requerimentos à Faculdade às 23 horas de um sábado, sendo esta uma das inovações que foi expressamente consagrada no NCPA, que estatui a aceitação da apresentação de requerimentos iniciais, pelos particulares, sob a forma de “telefax ou transmissão eletrónica de dados, valendo como data de apresentação a do termo da expedição” (artigo 104.º, n.º1, alínea d) NCPA). Aliás, reforçando a ideia de continuidade dos serviços públicos, esclarece-se que, de ora em diante, as comunicações eletrónicas com a Administração Pública podem ser realizadas “em qualquer dia e independentemente da hora de abertura e do encerramento dos serviços” (artigo 104.º, n.º2 NCPA).
Por outro lado, a desmaterialização do procedimento administrativo contribui para a supressão das distâncias territoriais, fazendo do local onde o cidadão se encontra, desde que munido de um meio de acesso à rede (computador, “iPad”, “iPhone”), um “local” de contacto administrativo. Deste modo, um aluno natural do arquipélago dos Açores, que decida regressar a casa no Natal, consegue aceder às pautas das classificações via Internet, uma vez que as mesmas são publicadas na plataforma eletrónica Fénix, pondo-se, assim, fim à ancestral necessidade de consultar as pautas das classificações afixadas em vitrines ou placards. Do mesmo modo, se ao consultar a sua conta verificar que não teve aproveitamento a uma cadeira, o mesmo pode inscrever-se em exame escrito através da plataforma, sem que tenha de apanhar um avião de regresso a Lisboa a fim de proceder a essa inscrição presencialmente nos serviços académicos da Faculdade.
Analisados os seus convenientes, paira, porém, a seguinte questão: será a Administração Pública eletrónica um paraíso de vantagens, em termos comparativos com o modelo tradicional, sem quaisquer riscos, perigos ou desvantagens?
Esclareça-se, em primeiro lugar, que algumas das identificadas alterações do agir administrativo, por efeito da introdução de mecanismos eletrónicos, evidenciam uma face obscura.
Por exemplo, este novo modelo da Administração Pública pode revelar-se propiciador de um aprofundar de desigualdades entre os cidadãos, desde logo aqueles que têm acesso aos meios tecnológicos e todos os restantes que, por razões de idade, educação ou local de residência, não têm vocação ou contacto com estes novos meios tecnológicos. Nesse sentido, houve a necessidade de se consagrar no NCPA um “princípio de paralelismo de tratamento”, ao abrigo do qual não só se garante que a utilização dos mecanismos próprios da administração eletrónica é meramente facultativa, como se assegura que a sua não utilização não acarreta qualquer restrição ou discriminação dos particulares que a ela não recorram (artigo 14.º, n.º 5 NCPA). Contudo, é por demais evidente que os utilizadores dos automatismos eletrónicos, ao beneficiarem das funcionalidades disponibilizadas por estes sistemas eletrónicos, têm designadamente um acesso mais rápido à informação sobre o estado do procedimento e sobre o conteúdo das diligências e decisões adotadas.
Desta forma, um aluno que opte por proceder à apresentação presencial de um requerimento na Divisão académica terá o mesmo tratamento que um aluno que o faça na plataforma eletrónica, sem prejuízo, porém, deste último não estar constrangido aos horários do serviço académico e poder controlar o estado do procedimento a todo o tempo.
De modo a acautelar esta eventual infoexclusão, o novo diploma codificador assegura também, expressamente, que cabe à Administração pública disponibilizar esses meios eletrónicos, de modo a que todos os destinatários os possam usar (artigo 14.º, n.º 4 NCPA). Por essa razão é que é mantido um computador na sala de espera da Divisão Académica, através do qual os alunos podem ter acesso à sua conta, contudo, com o inconveniente da utilização do mesmo estar sujeito ao horário do respetivo serviço académico.
Em segundo lugar, tendo presente a diversidade de máquinas e programas informáticos existentes, há ainda a registar, agora num campo essencialmente técnico, problemas de compatibilidade ou interoperatividade de equipamentos e de programas, que impedem a interconexão de redes, com as inerentes impossibilidades de interação por via eletrónica no interior das diversas Administração Públicas de âmbito nacional, entre a Administração nacional e a Administração da UE, ou entre todas estas Administrações Públicas e os cidadãos. Interessa-nos a este respeito as dificuldades que surgem entre os serviços da reitoria e os serviços das diversas unidades orgânicas da mesma universidade pública, neste caso a Universidade de Lisboa. Refira-se que foi em resposta a este problema, visando uma normatização técnica que garanta a conetividade entre os diferentes serviços, que se enveredou pelo caminho da implementação da plataforma eletrónica Fénix na nossa Faculdade, como se conclui pela leitura do Comunicado à Escola já referido.
Muitos outros aspetos poderiam ter sido apontados. Contudo, prezando a brevidade deste artigo, gostaríamos apenas de referir, em tom de conclusão, que a utilização da informática numa Administração progressivamente eletrónica, por envolver delicados problemas de tensão e conflitualidade face a posições jurídicas subjetivas dos cidadãos, nunca pode deixar de respeitar ao princípios organizativos da Constituição Administrativa, já que, ainda que eletrónica, esta não deixa de ser Administração Pública, encontrando-se como tal vinculada à Constituição e aos princípios constantes do NCPA.
Francisca Resende Gomes, n.º 28150
Referências bibliográficas e sitográficas:
MACHADO, Cristina Maria da Silva Lopes e Navarro, A decisão administrativa eletrónica – Emergência da regulação do procedimento administrativo eletrónico, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2010, disponível em https://www.icjp.pt/sites/default/files/papers/texto_dissertacao_4_revisto_i.pdf
MARIANO, Bernardo Gomes da Cunha Cura, A Administração Eletrónica em Portugal, Universidade Católica Portuguesa, Porto, Novembro de 2015, disponível em http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/20448/1/A%20Administra%C3%A7%C3%A3o%20Electr%C3%B3nica%20em%20Portugal.pdf
OTERO, Paulo, Manual de Direito Administrativo, Volume I, Coimbra, Almedina, 2013, pp.484-496.
ROQUE, Miguel Prata, O Procedimento Administrativo Eletrónico, in “Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo”, Volume II, Lisboa, AAFDL Editora, 2016, p. 377-408
ROQUE, Miguel Prata, O nascimento da Administração Eletrónica num Espaço Transnacional (Breves Notas a Propósito do Projeto de Revisão do Código do Procedimento Administrativo), in “E-Pública – Revista Eletrónica de Direito Público”, 1 (2014), disponível em http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/PVL_MA_29908.pdf
SILVA, Vasco Pereira da, Em busca do ato administrativo perdido, Coimbra, Almedina, 2003, p. 482.
http://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2016/08/Comunicado-fenix.pdf
http://justicatv.pt/powerpoints/22Maio2015/Jose-Duarte-Coimbra.pdf
[1]Parlamento autoriza legislação sobre morada única digital in https://www.publico.pt/2017/03/03/politica/noticia/parlamento-autoriza-legislacao-sobre-morada-unica-digital-1763895 (consultado às 13h23, de 25 de março de 2017).
[2] MIGUEL PRATA ROQUE, O Procedimento Administrativo Eletrónico, in “Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, vol. II”, Lisboa, AAFDL Editora, 2016, p. 377-378.
[3] PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, vol.1, Coimbra, Almedina, 2013, p.485.
[4]VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca do ato administrativo perdido, Coimbra, Almedina, 2003, p. 482.
[5] in http://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2016/08/Comunicado-fenix.pdf (consultado às 16h33, de 25 de março de 2017).
No estudo introdutório da matéria dos princípios-base da atividade Administrativa, podemos, intuitivamente, traçar um quadro que revela a confluência de dois princípios tendencialmente conflituantes. São eles o princípio da separação e interdependência de poderes, consagrado no artigo 111º da Constituição (de ora em diante CRP) e por outro lado a ampliação do princípio da legalidade, acompanhado pela consagração da garantia da revisão jurisdicional dos atos administrativos – artigos 20º e 268º/4 da CRP. O primeiro exige a existência de um domínio de competências reservado a cada órgão estatal, livre de ingerências por parte de outros. O segundo aponta para um controlo dos tribunais na tutela das posições jurídicas dos cidadãos perante a Administração. O equilíbrio entre estas duas tendências alcança-se através do desenho de limites funcionais a ambas as atuações, administrativa e judicial, limites estes que são confirmados pelos princípios referidos.
A intervenção dos tribunais no julgamento de litígios emergentes de relações jurídico-administrativas envolve um juízo sobre a legitimidade do exercício de outro poder público – o poder executivo – logo ter-se-ão que aplicar limites a esta atividade de fiscalização, para evitar que ela invada o núcleo essencial da função administrativa. Este limite concretiza-se por meio da restrição da fiscalização jurisdicional à esfera de juridicidade, os tribunais apenas têm competência para aferir da compatibilidade das decisões administrativas com o bloc légal. Desta forma não privam a Administração do exercício da sua função, pois esta atua num campo delimitado (pelo Direito). Consequentemente, exclui-se do campo de jurisdição todos os poderes de decisão que abarquem questões de mérito, salvaguardando-se um espaço de reserva da administração (com o fundamento de que a lógica procedimental e técnica da Administração e o contacto permanente com as situações da vida concreta, tornam a Administração mais apta a desempenhar a tarefa). Este limite está consagrado no artigo 3º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (de ora em diante CPTA).
Por outro lado, compete à Administração exercer a sua atividade dentro dos limites estabelecidos pela norma legal e mais amplamente o Direito. ROGÉRIO SOARES afirma que o reconhecimento de que a atividade da Administração é uma parte integradora de um sistema mais subtil que o da construção geométrica – “criar direito – aplicar direito – verificar direito” não significa que a Administração não esteja, mesmo onde pareça que lhe é reconhecida uma liberdade, subordinada ao Direito. A discricionariedade é um poder-dever jurídico.
Apesar desta matéria ser sobretudo direito substantivo, podemos analisá-la da perspetiva processual, nomeadamente nas situações onde os limites não estão perfeitamente definidos. Ao longo do CPTA, o legislador concretiza o princípio geral da limitação funcional da jurisdição administrativa – artigo 3º - em alguns momentos processuais onde são, inclusive, de maior destaque as zonas de incerteza e risco de sobreposição entre as áreas de decisão administrativa e jurisdicional. O artigo 71º/2, referente à condenação à prática de ato devido (previsto no artigo 268º/4, fruto da revisão constitucional de 1997) é um exemplo, que passarei a analisar em seguida.
Sempre que um particular, titular do direito de exigir a emissão de um ato administrativo, dirija ao órgão administrativo competente um requerimento destinado a obter a prática desse ato, e essa pretensão seja recusada, o sujeito está habilitado a propor uma ação de condenação. O artigo 71º/1 do CPTA dita que o tribunal não se deve limitar a verificar se a recusa do ato foi ilegal – no caso de erro manifesto de apreciação por exemplo (declarando consequentemente a invalidade do mesmo se for o caso). Deve, inclusive, manifestar-se quanto à pretensão do interessado, impondo, se esta for bem fundamentada, a prática do ato administrativo. O poder de condenar a Administração à emissão de atos ilegalmente omitidos ou recusados é uma concretização do artigo 3º do CPTA, conferindo aos tribunais os seus poderes próprios do exercício da função judicial.
No entanto esta expansão dos poderes de pronúncia do juiz conduz à criação dos tais riscos de sobreposição, dado que temos intromissão judicial na área decisória que corresponde ao exercício de funções administrativas. Para dificultar a situação o legislador não procedeu categoricamente , à delimitação dos poderes de pronúncia do juiz administrativo, no quadro da ação de condenação à prática do ato devido, utilizando no n°2 do artigo 71, um conceito indeterminado. O elemento essencial da distinção dos poderes de pronúncia é a determinação dos casos em que um ato administrativo envolve a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa. Portanto o juiz deve agir de igual forma quando a prática do ato administrativo ilegalmente recusado envolva o exercício de poderes discricionários? Poderá o juiz substituir o preenchimento do conceito indeterminado àquele que fora construído pela Administração para efeito da emissão do ato administrativo em causa?
Numa análise superficial parece-nos que o seu âmbito de aplicação deve ser reconduzido ao espaço de liberdade de atuação administrativa (conferido por lei e limitado pelo bloc légal), portanto ,à partida, aponta sempre para a existência de uma certa autodeterminação administrativa. No entanto, o seu preenchimento mais rigoroso exige estudo sobre as diferentes perspetivas teóricas que determinam em concreto as circunstâncias, pressupostos em que a Administração atua. A teoria da dualidade (que distingue discricionariedade e margem de livre apreciação, consoante a Administração possa escolher os resultados jurídicos – estatuição; quer possa preencher os conceitos jurídicos indeterminados que enquandram os pressupostos da sua atuação – previsão) é a posição clássica da doutrina. Porém o blind spot desta teoria está no facto de não apresentar um critério que permita identificar as situações em que a indeterminação concetual é propositada ,logo origina um espaço de liberdade para a Administração atuar, das situações em que a indeterminação concetual não tem esse fim (enfim, matérias para outra divagação). A teoria unitária da discricionariedade contrapõe-se à teoria dualista. Defende uma categoria unitária que engloba tanto a indeterminação estrutural (resultados jurídicos) quer a indeterminação conceitual (fruto da utilização de conceitos indeterminados). Considera a separação da categoria como descrita na teoria da dualidade uma conceção artificiosa. Isto porque a abertura da norma na previsão influencia a estatuição e vice-versa. Há uma noção ampla de discricionariedade.
É nestas duas teorias que ANTÓNIO CADILHA suporta a sua interpretação de formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa reconduzindo o conceito a um espaço de livre criação de efeitos jurídicos confiado à Administração e constituido pelos seguintes elementos: a forma de exercício desse poder (a densificação dos pressupostos de facto da decisão deverá ser feita casuisticamente); e a sua finalidade (permitir que à conformação jurídica de uma situação presidam critérios meta-jurídicos, fixados por orgão idóneo). Defende que só existe um verdadeiro espaço de autodeterminação da Administração nas situações em que esta faz uma avaliação das situações concretas baseando-se num juízo de prognose, logo assumindo o risco decisório. Tal sucede quando a norma lhe faculta diretamente uma discricionariedade de ação, quer quando utiliza, propositadamente, conceito indeterminado suscetível de preenchimento valorativo. Logo inclui-se na previsão normativa de formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa a aplicação de conceitos indeterminados pela Administração. Não podemos esquecer que estas valorações só são legítimas se no exercício da função administrativa. Portanto entende-se que uma valoração é própria da função administrativa quando for autodeterminada nestes espaços que o legislador deixa à responsabilidade da Administração (por motivos de natureza funcional).
Após esta análise concluímos que apesar de tortuosa, o legislador oferece o critério legal vinculativo para os tribunais quanto à definição dos limites funcionais da jurisdição administrativa (resultado da existência comprovada de uma reserva da Administração). Este critério legal preenche o blind spot apontado à teoria da dualidade na qual o autor se baseia: fornece a chave para identificar as situações em que a indeterminação concetual implica o reconhecimento de uma margem de apreciação à Administração, limitando a sindicabilidade dos tribunais nesta matéria.
Consequentemente , caso não seja possível identificar uma única solução como legalmente possível (a qual existirá sempre que se esteja perante um poder vinculado) o juiz não poderá determinar o conteúdo concreto do ato devido, ao invés, deve proferir uma sentença indicativa nos termos do qual traça em maior ou menor medida, o quadro, de facto e de direito, dentro do qual esses poderes discricionários deverão ser re(exercidos) pela Administração, sem precisar o sentido da direção a tomar – 71°/2.
Pelo contrário verificamos que o artigo 71°/1 permite a saída de uma sentença que condene a Administração a emitir um ato administrativo com sentido e conteúdo totalmente densificados , isto, porque, a interpretação da norma habilitante vinculava a Administração à emissão imperativa do ato administrativo que foi negado ao particular e que portanto lhe é devido. O tribunal age, nesta situação, dentro da sua competência, devolvendo ao particular um direito que já era seu em primeira instância.
Citando VASCO PEREIRA DA SILVA foi com a reforma de 2002/2003 e a introdução deste novo artigo 71º ,principal manifestação da mudança de paradigma na lógica do Contencioso Administrativo que, ao passar da mera anulação para a plena jurisdição, os tribunais deixam de estar limitados na sua tarefa de julgamento, superando os traumas de infância. Salienta contudo que estas alterações não significam que condenar a Administração seja a mesma coisa que praticar atos em vez dela ou substituir a sua atuação pela dos tribunais. Não há uma, como vimos, uma brecha dos limites funcionais establecidos em concordância com o princípio da separação de poderes, garantindo-se, simultanemente, a tutela das posições jurídicas dos cidadãos, constitucionalmente previstas.
*Itálico corresponde a citações
Bibliografia:
António Cadilha, Os poderes de pronúncia jurisdicionais na acção de condenação à prática do acto devido, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia” Volume II
Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, “Direito Administrativo Geral – Tomo I – Introdução e Princípios Fundamentais”, 3ª edição, Dom Quixote, 2008
Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 3.ª ed., Coimbra, 2006
Vasco Pereira da Silva, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo”, 2ª. edição, Almedina, Coimbra, 2009
Mónica Dias / Nº28097
Para o Professor MARCELO REBELO DE SOUSA, apenas faz sentido falar em Direito público se a atuação dos órgãos do poder político do Estado estiver sujeita ao Direito Positivo (ou seja, às regras existentes).
O princípio da legalidade, como nos diz o Professor DIOGO FREITAS DO AMARAL, está formulado na própria Constituição, no artigo 266.º/2, e também no Código de Procedimento Administrativo, no artigo 3.º/1.
O Professor MARCELLO CAETANO definia este da seguinte forma: “nenhum órgão ou agente da Administração Pública tem a faculdade de praticar atos que possam contender com interesses alheios, se não em virtude de uma norma geral anterior”. O Professor FREITAS DO AMARAL diz-nos que esta definição consiste, basicamente, numa proibição, já que a Administração Pública não pode lesar os direitos ou os interesses dos particulares, salvo com base na lei – assim, o princípio da legalidade, por um lado, era um limite, e, por outro, agia no interesse dos particulares.
Mais recentemente, o mesmo Professor propõe a seguinte definição: “os órgãos e agentes da Administração Pública só podem agir com fundamento na lei e dentro dos limites por ela impostos”. Com esta nova formulação, a regra geral já não é a do princípio da liberdade (pode fazer-se tudo aquilo que a lei não proíbe), mas sim a do princípio da competência (só se pode fazer aquilo que a lei permite).
REBELO DE SOUSA defende que o Princípio da Legalidade Administrativa tem três dimensões:
A primeira dimensão – a legalidade democrática: definição
No que respeita à primeira dimensão, a CRP é muito explícita na definição do conteúdo ideológico deste princípio.
O antigo artigo 3.º/4, que passou para o 3.º/2 com a revisão constitucional de 1982 , ao fundar o Estado na “legalidade democrática”, deve ser entendido conjuntamente com todas as outras disposições constitucionais que traçam o conceito de Estado de Direito democrático.
Isto diz-nos que a Legalidade vigente não é uma qualquer Legalidade – é democrática, pois tem por conteúdo os princípios fundamentais do regime político democrático (como a soberania popular, o respeito e garantia dos direitos fundamentais, a separação e interdependência dos órgãos de soberania, etc.).
Segundo o mesmo Professor, em Portugal, assumem especial relevância como condições para a efetivação do princípio da Legalidade administrativa, entre outras, as seguintes características:
Também é importante referir as duas facetas que podem ser apontadas como condicionantes da efetivação do princípio da Legalidade administrativa:
A segunda dimensão – a função administrativa do Estado
Passando à dimensão Administrativa substancial, ela aparece na CRP de modo a que possa ser definida como “a atividade dos órgãos do poder político que consiste na execução das leis e na satisfação das necessidades coletivas que, por virtude da prévia opção política, se entende que incumbe ao Estado prosseguir, encontrando-se ambas as tarefas cometidas a órgãos interdependentes dotados de iniciativa e de parcialidade na realização do interesse público”.
A CRP elenca como finalidades da atividade administrativa do Estado a execução das leis e a “promoção do desenvolvimento económico-social e a satisfação das necessidades coletivas” (artigo 199.º, alínea g)), comportando, nomeadamente, a prática de atos administrativos independentemente de enquadramento legal imediato.
Constitucionalmente, é admissível que a função administrativa se traduza na realização de atividades jurídicas ou materiais que representam execução de atos políticos stricto sensu e não de atos legislativos, o que corresponde a que, nestes casos, a função administrativa continue a ser uma função dependente ou subordinada, não da legislativa, mas sim da função política.
Este fenómeno, apesar de, em certa medida, ser universal, provoca uma certa crise do princípio da Legalidade Administrativa, já que não existe sobreposição perfeita entre os conceitos de ato legislativo e ato político, tende a generalizar-se a multiplicação de atos políticos sem forma legislativa , e é frequente o caráter inominado desses atos ou a sua reduzida previsão legal, quer em termos de matéria, de forma ou mesmo de competência.
O disposto no já mencionado artigo 199.º, alínea g), é atenuado pelo conteúdo de preceitos como os artigos 3.º, n.º 2, 199.º, alínea f) e 266.º. Estes, na verdade, consagram aspetos essenciais da Legalidade Administrativa:
A terceira dimensão – as garantias processuais do princípio da legalidade administrativa
Passamos ao terceiro plano do Princípio da Legalidade Administrativa, o das vias contenciosas ou processuais de garantia deste.
No sistema da CRP, o artigo 20.º assegura a todos o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos, não podendo a Justiça ser recusada por insuficiência de meios económicos. O artigo seguinte, 21.º, consagra o direito de resistência.
A importância destes preceitos reside no facto de serem invocáveis, inclusivamente para fazer face a lacunas decorrentes da incidência de outros preceitos constitucionais especificamente relativos à responsabilidade civil do Estado e à impugnabilidade contenciosa dos atos administrativos ilegais.
Portanto, passa a ter dignidade constitucional o princípio da indemnização dos danos causados aos cidadãos pelo Estado no exercício das suas funções. Por outro lado, o artigo 271.º define os termos em que se efetiva a responsabilidade civil, criminal e disciplinar dos funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas.
Outra garantia de grande relevância jurídica do Princípio da Legalidade Administrativa é a cláusula geral de recorribilidade contenciosa dos atos administrativos definitivos e executórios por parte dos interessados, com fundamento em ilegalidade, que está prevista no artigo 269.º.
Conclusão
Para REBELO DE SOUSA, é necessário destacar algumas notas:
Bibliografia consultada:
- FREITAS DO AMARAL, Diogo, "Curso de Direito Administrativo", Ed. Almedina, 3.ª edição (2016), Coimbra, pp. 38-40;
- CAETANO, Marcello, "Manual de Direto Administrativo - Vol. I", Ed. Almedina, 10.ª edição (2008), Coimbra, p. 30;
- REBELO DE SOUSA, Marcelo, "O princípio da legalidade administrativa na Constituição de 1976" - Extraído do n.º 13 (janeiro de 1980) da Revista DEMOCRACIA E LIBERDADE, Instituto Democracia e Liberdade, Lisboa
Ana Sofia Rolim
Aluna n.º 28137
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